O Sítio de Dona Benta

O Sítio de Dona Benta faz parte do livro O Saci, de Monteiro Lobato.

Sitio de Dona Benta  Picapau Amarelo
Museu Monteiro Lobato, Sítio do Picapau Amarelo

O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o de
Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o “quarto de Pedrinho”, que lá passava as férias todos os anos; e o da tia Nastácia, a cozinheira e o faz-tudo da casa.

Emília e o Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho do escritório, onde ficavam as três estantes de livros e a mesa de estudo da menina.

A sala de jantar era bem espaçosa, com janelas dando para o jardim, depois vinha a copa e a cozinha.
— E sala de visitas? Tinha?
— Como não? Uma sala de visitas com piano, sofá de cabiúna, de palhinha tão bem esticada que “cantava” quando Pedrinho batia-lhe tapas. Duas poltronas do mesmo estilo e
seis cadeiras.

A mesa do centro era de mármore e pés também de cabiúna. Encostadas às paredes havia duas meias mesas também de mármore, cheias de enfeites: três
casais de içás vestidos, vários caramujos e estrelas-do-mar, duas redomas com velas dentro, tudo colocado sobre os “pertences” de miçangas feitos por Narizinho.

Hoje ninguém mais sabe o que é isso. Pertences eram umas rodelas de crochê que havia em todas as casas, para botar bibelôs em cima; para o lavatório de Dona Benta; Narizinho fizera
pertences de crochê; e para a sala de visitas fizera aqueles de miçanga de várias cores; da bem miudinha.

Antes da sala de visitas havia a sala de espera, com chão de grandes ladrilhos quadrados; “cor de chita cor-de-rosa desbotada”. A sala de espera abria para a varanda. Que varanda gostosa! Cercada dum gradil de madeira, muito singelo, pintado de azul-claro.

Da varanda descia-se para o terreiro por uma escadinha de seis degraus. Nas férias do ano
anterior Pedrinho havia plantado em cada canto da varanda um pé de “cortina japonesa”, uma trepadeira que dá uns fios avermelhados da grossura dum barbante, que depois ficam
amarelos e descem até quase ao chão, formando uma verdadeira cortina viva.

Aquela varanda estava se transformando em jardim, tantas eram as orquídeas que o
menino pendurara lá os vasos de avenca da miúda que ele foi colocando junto à grade.

O jardim ficava nos fundos da sala de jantar, um verdadeiro amor de jardim, só de plantas antigas e fora da moda. Flores do tempo da mocidade de Dona Benta; esporinhas, damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-demacaco, dois pés de jasmim-do-cabo, e outro, muito velho, de jasmim-manga.

Plantado na calçada e a subir pela parede, o velhíssimo pé de flor-de-cêra, planta que os modernos já não plantam porque custa muito a crescer. Até cravo-de-defunto havia lá, flor com que Narizinho se implicava por ter “cheiro de cemitério”.

Bem no centro do jardim havia um tanque redondo com uma cegonha de louça, toda esverdeada de limo, a esguichar água pelo bico. Mas a cegonha já estava sem cabeça, em conseqüência das pelotadas do bodoque de Pedrinho. E um velho regador verde morava perto do tanque, porque era com a água do tanque que tia Nastácia regava as plantas no tempo da seca.

— E o pomar?
— O pomar ficava nos fundos da casa, depois do “quintal da cozinha”, onde havia um galinheiro, um tanque de lavar roupa e o puxado da lenha. O poço velho fora fechado
depois que Dona Benta mandou encanar a água do morro. Passado o quintal vinha o pomar — aquela delícia de pomar!
— Por que delícia?
— Porque as árvores eram muito velhas, e árvore quanto mais velha melhor para a beleza e a frescura da sombra. Árvore nova pode ser muito boa para dar frutas bonitas,
baixinhas e fáceis de apanhar. Mas para a beleza não há como uma árvore bem velha, bem craquenta, com os galhos revestidos de musgos, liquens e parasitas.

Certas árvores do pomar tinham donos. Havia a célebre pitangueira da Emília, as três jabuticabeiras de Pedrinho, a mangueira de manga-espada de Narizinho e os pés de mamão de tia Nastácia. Até o Visconde tinha sua árvore — um pezinho de romã muito feio
e raquítico. O resto das árvores não eram de ninguém — eram de todos.

E quantas! Cambucazeiros, duas jaqueiras, os pés de cabeluda e grumixama, os três pés de sapotis e aquele de fruta-do-conde que “não ia por diante.”

Era tão antigo aquele pomar que os vizinhos até caçoavam. Viviam dizendo: “O pomar de Dona Benta está tão velho que qualquer dia se põe a caducar.

As jaqueiras começam a dar manga e as mangueiras a dar laranjas.” Mas Dona Benta não fazia caso. Não admitia que se cortasse uma só árvore — nem o pobre pé de fruta-do-conde encarangado.
Dizia que cada uma delas lembrava qualquer coisa da sua meninice ou mocidade.
— Este pé de laranja-baiana — costumava dizer — foi o primeiro que tivemos aqui, e dele saíram os enxertos dos outros.

Naquele tempo laranja-baiana era uma grande novidade. A muda foi presente do defunto Zé das Bichas, um português muito trabalhador que morava numa chácara perto da vila.
Impossível haver no mundo lugar mais sossegado e fresco, e mais cheio de passarinhos, abelhas e borboletas.


Como Dona Benta nunca admitiu por ali nenhum menino de estilingue, a passarinhada se sentia à vontade e fazia seus ninhos como se estivessem na Ilha da Segurança. O próprio
bodoque de Pedrinho não funcionava no pomar.

— E que passarinhos havia?
— Oh, tantos!… No tempo das laranjas o pomar enchia-se de sabiás de peito vermelho, amigos de cantar a célebre música-de-sabiá que os pais vão ensinando aos filhotes, sempre igualzinha, sem a menor mudança.

E havia os sanhaços cor de cinza clara, as saíras azuis e as graúnas pretíssimas. E muito canário-da-terra, muito papa–capim, tisio, pintassilgo, rolinha, corruíla…


As corruílas eram o encanto da menina, que vivia a observar o jeitinho delas no constante escarafunchamento dos muros carunchados em busca de pequenas aranhas e outros bichinhos moles. Bichinho duro corruíla não quer. E sempre com as penas da cauda erguidas, ninguém sabe por quê. Corruílas cor de telha e mansíssimas.

Há também a linda corruíla do brejo, que faz aqueles enormes ninhos espinhentos — mas essas nunca apareciam no pomar. Moravam nos brejos.

Às vezes pousavam lá, de passagem, um ou outro tié-sangue, o passarinho mais lindamente vermelho que existe. Mas não se demoravam. Eram arisquíssimos.

— Por que, vovó, justamente os passarinhos mais bonitos são os mais ariscos? — perguntou certa vez a menina.
— Justamente por serem bonitos, minha filha. Os homens perseguem os passarinhos bonitos porque são bonitos — quem quer saber de passarinho feio? Os tico-ticos, por exemplo: vivem na maior paz em todos os terreiros justamente porque ninguém os persegue. São feinhos, os
coitados.

Mas apareça aqui um tié-sangue, ou uma saíra daquelas lindas: todos se põem atrás deles, querendo apanhá-los vivos ou mortos. Para a felicidade neste nosso mundo, minha filha, não há como ser tico-tico, isto é, feinho e insignificante …

Mas o rei do pomar era o joão-de-barro. Na paineira grande, bem lá no fundo, moravam dois num ninho feito de argila, em forma de forno de assar pão. Era o casal mais amigo possível. Não se largavam nunca. Onde estava um, também estava por perto o outro.

E se por acaso um se afastava um pouco mais, volta e meia soltava uns gritos como
quem pergunta: “Onde você está” — e o outro respondia: “Estou aqui”. E de vez em quando cantavam juntos aqueles terrível dueto que mais parece uma série de marteladas
estridentes e alegres.

— Que coisa interessante, vovó! — disse Pedrinho um
dia. — Repare que eles sempre cantam ou gritam juntos. Um faz uma parte e outro faz o acompanhamento, como no piano…
E era assim mesmo. São tão amigos que até para cantar “cantam a duas mãos”, como dizia a boneca.

Certo ano o casal resolveu construir um ninho novo em outro galho da paineira, e durante quinze dias o divertimento dos meninos foi acompanhar de longe aquele trabalho.

Os dois passarinhos traziam da beira do ribeirão um pelote de barro no bico, e ficavam ali a colocar aquela massa no lugar próprio, e a bicá-la cem vezes para que ficasse bem ligadinha.
Enquanto um se ocupava naquilo, o outro voava em busca de mais barro.

Nunca estavam os dois no mesmo serviço; revezavam-se. À tardinha interrompiam o trabalho, cantavam o dueto com toda a força e depois se acomodavam no ninho velho.

Tia Nastácia vivia dizendo que nos domingos eles não trabalhavam, mas infelizmente os meninos não puderam tirar a prova duma coisa tão linda.

O mais curioso foi que depois de acabado o ninho novo, eles, em vez de se mudarem, resolveram fazer um segundo ninho em cima daquele. Quem primeiro notou isso foi o
Visconde, que foi, todo assanhado, contar a Dona Benta.
— Venham ver — disse o sabuguinho. — Eles terminaram ontem a construção do ninho novo, mas não se mudaram do velho; em vez disso estão a construir um segundo ninho sobre o novo — uma espécie de segundo andar.


Dona Benta foi com os meninos e viu.
— Por que será, vovó? — quis saber Pedrinho.
— Não sei, meu filho, mas eles devem ter lá as suas razões.
— Eu sei — berrou Emília. — É para alugar!…
Todos riram-se.
— Eu acho — disse Narizinho — que é para acomodar os filhotes quando chegarem ao ponto de voar.
— Isso não — observou Dona Benta. — Porque se os pais construíssem casa para os filhos, estes não aprenderiam a arte da construção e essa arte se perderia. É fazendo que se
aprende, já disse o velho Camões.
— Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó — têm inteligência…
— Está claro que têm, meu filho. A inteligência é uma faculdade que aparece em todos os seres, não só no homem.


Até as plantas revelam inteligência. O que há é que a inteligência varia muito de grau. É pequeniníssima nas galinhas e nos perus, mas já bem desenvolvida no joão-debarro — e é um colosso num homem como Isaac Newton, aquele que descobriu a Lei da Gravitação Universal.

O terreiro era vedado por uma cerca de paus-a-pique — rachões de guarantã. Bem no centro ficava a porteira. Para lá da porteira era o pasto, onde havia um célebre cupim de metro e meio de altura; e mais adiante, um velho cedro ainda do tempo da mata virgem.

Através do pasto seguia o “caminho” — ou a estrada que ia ter à vila, a légua e meia dali. No fim do pasto, perto da ponte, apareciam a casinha do tio Barnabé e a figueira grande; e bem lá adiante, o Capoeirão dos Tucanos, uma verdadeira mata virgem onde até onça, macucos e jacus havia.


E que mais? Ah, sim, o ribeirão que passava pela casa do tio Barnabé cortava o pasto e vinha fazer as divisas do pomar com as terras de plantação. Impossível haver no mundo um ribeirão mais lindo, de água mais limpa, com tantas pedrinhas roliças de todas as cores no fundo.

Em certos pontos viam-se pequenas praias de areia branca. Nas curvas a água quase que parava, formando os célebres “poços” onde Pedrinho pescava lambaris e bagres.

As beiras de água rasa eram a zona dos guarus — o peixinho menor que existe

Gostou do Sítio? Quem não gostaria de passar as férias nesse lugar?